segunda-feira, 9 de junho de 2014

Amo, logo existo

"Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. Ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. Ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno, o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal. Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá. Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos. Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor”. (da Bíblia).

Hoje em dia fala-se muito de amor... Amor físico, amor platónico, amor materno, amor à vida, amor a Deus etc. etc. Será bastante difícil encontrar nos dicionários modernos uma definição exclusiva para determinar o significado deste termo tão usado e abusado hoje em dia. É relativamente fácil dizer "amo-te", difícil será compreender o significado dessa expressão. Como sabemos tal palavra transitou directamente do latim (amor) para o português. Devido a não termos hoje em dia uma noção do seu significado na cultura romana, damos actualmente à expressão múltiplos significados: Afeição, compaixão, querer bem, etc. etc. De um modo geral esta ideia está intrinsecamente relacionada com a formação de uma atenção afectiva por um objecto, ideia, ou pessoa. Atenção essa capaz de estabelecer uma ligação sentimental de proximidade cuja aplicação estimula beneficiar o objecto, ideia ou pessoa amada. Mas, embora a palavra "amor" seja de origem latina creio que o seu conceito subjacente será provavelmente de origem cultural grega. Isto torna o tema ainda mais complexo. Infelizmente não podemos analisar o significado da palavra por via popular (grego Coiné) - o grego comum falado nas ruas e lares pelos populares das cidades gregas - devido ao facto de que não existem muitas peças escritas sobre o tema em grego popular. Poderíamos eventualmente analisar o tema por via erudita, mas não é esse naturalmente o objectivo deste texto. Até porque erroneamente chamamos "amor erótico" a um tipo de amor que nada tem a ver com a origem do termo. Eros era um "deus" do panteão grego que segundo a Teogonia de Hesíodo, tinha unificado e organizado o "caos primordial" transformando assim o caos em cosmos. Mesmo nas tradições gregas posteriores, Eros nunca aparece ligado ao "erotismo" e muito menos relacionado com o acto sexual em si próprio. Também hoje em dia chamamos "amor platónico" a um tipo de amor "ideal", querendo com isso significar um tipo de "afeição" pertencente ao "universo das ideias" ou "inatingível". Esquecemos contudo que para Platão a "ideia" era ela própria a "realidade", e o mundo físico era composto apenas por "sombras" dessa mesma "realidade". Logo se depreende que para Platão, sendo o amor uma "ideia" apenas se torna tangível (praticável) quando perfeitamente executada por seres libertos da escravidão da ignorância para a liberdade do conhecimento. Por isso mesmo, os gregos tinham outras palavras mais "comuns" para definir tão nobre "afeição": "Storge" - amor ao próximo, ou aquilo que hoje definiríamos como "amizade". "Philae", (amor ao conhecimento). E naturalmente "Agape" - o amor altruísta, espiritual e de "origem divina". Mas, mesmo que pudéssemos definir o "amor" nas civilizações, romanas e gregas será que isso teria hoje alguma correspondência civilizacional? Atrevo-me a pensar que não. Embora alguns fundamentalistas queiram a todo o custo aplicar na nossa sociedade alguns princípios filosóficos, éticos e morais baseados em culturas ancestrais tal como a grega, a romana, e até (mais recentemente) a céltica, tudo leva a crer que os seus esforços serão ignorados pelas sociedades actuais. Penso que estes antigos conceitos de amor estão hoje completamente ultrapassados. Na actual civilização ocidental preferimos compartilhar estes pensamentos sobre o tema com santo Agostinho: "Ama e faz o que quiseres"... Esta famosíssima frase do santo tem muito que se lhe diga. É que quem ama, só pode fazer o melhor para o outro. E, querer o melhor para o objecto do nosso amor é ser de facto muito exigente. Não é "ama e faz o que te apetece", o que seria uma contradição. É antes: “Se amares de verdade, vais saber escolher o melhor para o objecto do teu amor”. Inclino-me a concordar plenamente com a "Teoria Triangular do Amor” de Sternberg. Para Robert Jeffrey Sternberg, psicólogo e psicométrico americano o amor caracteriza-se por três elementos essenciais e complementares entre si: A "Intimidade", a "Paixão" e o "Compromisso". "Intimidade" porque não existe genuíno amor sem uma relação de proximidade. Por exemplo, "amar os chineses" nada significa se não tiver com eles uma relação de proximidade, nem que seja meramente ocasional ou alguma forma de empatia. "Paixão" porque sem "chama" essa atitude de intimidade não terá nenhumas consequência práticas e por isso se torna absolutamente inócua. Logo, a paixão é o alimento do amor, tal como a lenha é o alimento do fogo. Como disse Camões: “amor é fogo que arde sem se ver"... "Compromisso" porque não há amor sem o estabelecimento de uma "ordem", "protocolo" ou "lei" para que a concretização dessa atitude de intimidade apaixonada seja possível.
No cristianismo primitivo amar seria sem dúvida o maior mandamento de Deus aos homens. Não era de todo uma questão opcional. Tinha claramente um carácter obrigatório. Como podemos ver no versículo dois da Didaquê (que se crê ser o primeiro livro a ser divulgado nas igrejas cristãs como regra de fé e prática): "Este é o caminho da vida: Primeiro: "Ama a Deus que te criou". Segundo: "Ama ao teu próximo como a ti mesmo"... Mais tarde no cristianismo medieval podemos constatar que esta "Regra de Ouro" foi desvirtuada a ponto de alguns santos se insurgirem contra o poder eclesiástico acusando-os de terem transformado este mandamento em banal "concupiscência". Porquê? Porque a concupiscência “ama” apenas o que está "perto" e o que "vê" - o que é facilmente "entendível". Assim, tudo leva a crer que a prática desse mandamento tinha sido "reduzida ao exagero" pelos religiosos medievais que tinham transformado a Igreja Universal num mero "condomínio fechado" onde o amor só faria sentido se fosse praticado "dentro" desse "condomínio". Como todos sabemos isso é absolutamente contrário à mensagem evangelizadora do cristianismo primitivo, pois, embora a Ecclesia (Igreja) seja considerada a "casa de Deus" o mandamento primitivo seria para amar também o próximo – os “vizinhos do bairro”.
Mas onde quererei chegar com tudo isto? Suspeito que alguns amigos leitores que já me conhecem compreenderam rapidamente o meu objectivo... Pois claro que quero chegar ao amor de Deus! Os escritos neo-testamentários afirmam sem margem para dúvidas que “Deus é amor”. Dizem claramente que "quem não ama não conhece Deus porque Deus é amor" e também: "Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele". Chegando a Deus chegamos inevitavelmente a Jesus Cristo! A bíblia diz que “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito para que todo aquele nele crê não pereça mas tenha a vida eterna". (João 3:16). Penso que ninguém como Jesus cumpriu tão plenamente o axioma de Sternberg. Ele tornou-se nosso íntimo pois deixou a sua vida celestial junto do Pai para vir até à humanidade cumprir uma missão deveras desagradável. Teve uma verdadeira paixão pelo ser humano e foi até ao fim (morte) no seu compromisso redentor - “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”. Certamente todos concordamos que Ele é o maior exemplo de prática de amor da história humana. Sim, porque segundo Sternberg o amor não é um mero sentimento ou uma teoria mas antes uma prática perfeitamente pessoal, natural, actual e possível. Em síntese poderíamos dizer que amar é dar. Aliás, Paulo de Tarso, - um dos primitivos apóstolos de Cristo - ensinou que “mais bem aventurada coisa é dar do que receber". Assim entendemos facilmente que amar é viver em função do outro, de um objecto, ideia ou pessoa ou até de uma causa. Amar implica uma auto-negação simultaneamente lúcida e apaixonada. Inclino-me bastante a concordar com Saint-Exupéry. No seu livro "O Principezinho", Saint-Exupéry diz que quem ama abdica da liberdade individual e num acto de vontade soberana torna-se responsável pelo objecto amado. "O amor (diz Saint-Exupéry) são laços" (nós, ataduras, amarras) e "quando amas tornas-te responsável pelo objecto amado". Tal como fez Jesus Cristo! O amor é portanto em última análise o abandono da nossa liberdade individual em benefício do outro. Quem ama não vive mais para si próprio mas para os objectos do seu amor. Quem ama despreza a sua própria liberdade para se "amarrar" duma forma íntima, apaixonada e comprometedora aos objectos do seu amor. Sou muitas vezes assaltado por imensas perguntas sobre este assunto: Será que de facto amamos? Será que estamos dispostos a viver para os outros tal como fez Jesus Cristo? Quando procuramos uma solução para os problemas que afligem a humanidade actual não estará no amor a solução? Não estará a solução em seguirmos afinal o exemplo de Jesus? Amigo leitor: Já se questionou se de facto ama verdadeiramente?
Concluo assim este texto dizendo que Deus ama. O seu amor certamente acabará por conquistar paulatinamente a humanidade. A crucificação de Cristo prova historicamente o Seu amor. Mas embora possa ter na cruz salvífica a sua maior demonstração, o amor de Deus não se esgota na cruz. Deus continua a amar porque afinal a sua própria essência é amor. É o amor que prova em última análise a existência de Deus. É o amor que dá significado à existência. Existência de Deus, de mim, e de ti... Portanto digo que o amor comprova também a minha própria existência dando-lhe significado. Por isso concluo também que "amo, logo existo". Eu por mim estou disponível para amar. Essa será quanto a mim a finalidade primeira e última da vida. Porque afinal "amar" é ter em mim a própria essência divina. E você? Você Ama?

Manuel Adriano Rodrigues
/2010

Sem comentários:

Enviar um comentário